Infinitivo e impessoal: ou o invisível e indivisível em minha pesquisa artística.

Referencial teórico

A pesquisa que apresento traz por base conceitos teóricos de autores como Ferreira Gullar, Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger, que apresentam em suas obras textuais, os desdobramentos das artes visuais, desde os movimentos de vanguarda na Europa no início do Séc. XX até o início dos anos 1960, já abrangendo o Brasil. Relaciono estas referências para elucidar questões contidas em minha pesquisa artística, com ênfase no abstracionismo geométrico ocorrido nesta fase.

Apresento como referencias as obras de artistas relevantes que contribuíram com suas indagações artísticas deixando um importante legado para a Arte. Este conhecimento passa ser de todos e para todos, na medida em que passam a ser acessados e incorporados nas diversas culturas, hibridizando-se em diversos pensamentos e deixando de ser somente um pensamento autoral, somando-se para uma construção coletiva em busca do universal tornando-se infinitivos e impessoais. “Quando se diz que um verbo está no infinitivo impessoal, isso significa que ele apresenta sentido genérico ou indefinido, não relacionado a nenhuma pessoa, e sua forma é invariável. Assim, considera-se apenas o processo verbal. Por exemplo: Amar e sofrer”. (Fonte: http://www.soportugues.com.br/secoes/morf/morf69.php).

Segundo COCCHIARALLE e GEIGER (1987, p.17): “O espaço euclidiano o por um longo período de tempo serviu de base para os pressupostos Renascentistas na representação do naturalismo através de uma ilusão perceptiva da tridimensionalidade utilizando-se da perspectiva, do tonalismo e representação do movimento dos objetos na bidimensionalidade do quadro.”

Este paradigma passa a sofrer um enfrentamento a partir do final do século XIX com o surgimento das vanguardas modernas influenciadas pelas experiências de urbanidade e pela Revolução Industrial, instaurando uma crise na arte que já se manifesta com suas pinceladas expressivas e novo emprego da luz opondo-se ao estatuto acadêmico hegemônico localizado principalmente na Europa ocidental. Com o deslocamento do artista do atelier para o espaço externo, em busca de impressões e sensações pessoais, liberando-se dos contornos e das tonalidades clássicas das imagens, mergulhando na luminosidade natural intensa colocando o artista em movimento, deslocando-se no tempo e espaço de um fragmento de imagem ideal.

As vanguardas europeias do início do século XX rompem com a ideia de imitação da natureza e seus ilusionismos referentes ao mundo objetivo rejeitando a ideia da arte como representação abrindo mão do espaço pictórico tridimensional em busca de uma expressão pura, latente e universal apropriando-se de elementos básicos abrindo espaço para as pesquisas formais com tendências construtivistas influenciando o fazer artístico através de um outro problema percorrido através dos elementos geométricos associados ao rigor matemático e a simplificação da forma. Surge então uma vertente ampla, geral, porém com algumas restrições: o Abstracionismo.

Artistas como Malevitch e Mondrian dão impulso à esta tendência para caminhos diferentes em busca do sensível, afim de conceituar os elementos de uma abstração e as intenções de uma não representação figurativa.

A luta contra a representação naturalista, exemplificada aqui pelo pensamento de Malevitch, irá caracterizar as diversas tendências do Abstracionismo até 1930, período em que a vertente geométrica, por sua vinculação explícita com a racionalidade, amadurece a consciência de que a formulação lógica dos pressupostos de uma arte não-representativa ainda não havia sido satisfatoriamente enfrentada.” (COCCHIARALLE, GEIGER: 1987, p.15).

Outra vertente, posteriormente denominada como Arte Concreta, declara a bidimensionalidade do espaço pictórico, como afirma Max Bill, “em aspecto e parte de um fenômeno pluridimensional, no qual o espaço real, perpetuamente cambiante, e o espaço psíquico se superpõem.” (GULLAR, 1985, p. 209). O termo cunhado por Theo Van Doesburg em 1930 intencionava a conceituar a procedimento pictórico não figurativo. A linha, a cor e a superfície são elementos concretos da pintura em oposição ao pensamento abstracionista ocorridos na mesma época.

O movimento concreto amplia-se para a América Latina, inicialmente na Argentina e em seguida para o Brasil, com o surgimento de dois núcleos, sendo um no Rio de Janeiro com o Grupo Frente: Ivan Serpa, Abraham Palatinik e Almir Mavignier, influenciados por Mario Pedrosa e posterior adesão de Franz Weissmann e Lygia Clark vindos de experiências abstratas aderem a linguagem geométrica. Outro grupo, em São Paulo, a aderir o movimento foi o Grupo Ruptura com Waldemar Cordeiro, Lothar Charoux e Luis Sacilotto, Geraldo de Barros, Hermelindo Fiamingui, entre outros, foram seguidores radicais dos pressupostos concretistas

A 1ª Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1951, apresenta obras de diversos artistas do grupo Suíço, dentre eles Max Bill, que teve sua obra “Unidade Tripartida” vencedora do Grande Prêmio de Escultura. Este evento deu impulso ao movimento repercutindo na criação da 1ª Exposição Nacional de Arte Concreta em São Paulo e em 1957 no Rio de Janeiro.

A plástica do essencial com a eliminação de qualquer vestígio de subjetividade defendido pela Arte Concreta, segundo Waldemar Cordeiro, “alcança seu apogeu em Malevitch e Mondrian. Agora surge uma nova dimensão: o Tempo. Tempo como movimento. A representação transcende o plano, mas não é perceptiva, é movimento.” (CORDEIRO, REVISTA AD, nº 20; Apud GULLAR, 1980, p. 229).

A questão avança com a dissidência do Concretismo, por parte dos artistas sediados no Rio de Janeiro que abrem a discussão para a desracionalização e existencialização das linguagens geométricas, culminando com a separação dos concretistas e criação do Neoconcretismo, privilegiando a experiência da criação da obra, colocando-a em proporções maiores sobre a teoria e transcendendo com um caráter quase metafísico o espaço mecânico abolindo a hierarquia entre forma, cor e fundo. O quadro deixa de ser suporte para ser campo de fruição estética, a procura de um novo espaço de integração dos elementos internos da obra, para o espaço exterior transcendendo sua materialidade para além de seus limites físicos e incorporando o espaço real. “Daí a ausência intencional da moldura na pintura, e da base na escultura, que, conforme a teoria do não-objeto, salvaguardam a diferença entre o espaço metafórico da representação e o mundo.” (COCCHIARALE, & GEIGER, 1987, p. 19).

Referencial artístico

Após diversas pesquisas e observações tomei como base para o referencial artístico, obras e artistas com linguagens e pesquisas, que parecem buscar além do limiar da estrutura da obra que se realiza no espaço, as repostas dos questionamentos referentes à representação metafórica do mundo real. Destaco a seguir Franz Weissmann¹, escultor, desenhista, pintor e professor, que mantém sua produção voltada ao figurativismo até 1950, quando inicia uma pesquisa dando ênfase às formas geométricas com pensamentos construtivistas e Lúcio Fontana, que no início de 1947 lança, por meio de uma série de manifestos, o Spazialismo, que baseia-se no princípio de que, em nossa era, a matéria pode ser transformada em energia invadindo o espaço em uma forma dinâmica proporcionada pela tecnologia.

Percebo em minha pesquisa, similaridades com os procedimentos que Weissmann utilizou na criação de algumas obras, quando fazia ensaios com papelões onde cortava, dobrava, torcia, o plano sem retirar nenhuma parte, experimentando diversas escalas até encontrar a forma ideal quando, então, preparava o desenho técnico para execução.

O artista produzia no sentido superar a materialidade dos elementos que utilizava. O objetivo procurado não estava no alumínio, nem no ferro ou na madeira, mas sim no vazio. Segundo Frederico Morais:

Este vazio não era (não é), entretanto, ausência de massa. Não é um buraco, o oco da forma. Weissmann não esculpe dentro da tradição, isto é, não desbasta nem agrega, ele cria espaços, lida com estruturas. Assim, o vazio neoconcreto é, na verdade, uma presença, é um espaço que se cria, novo, surpreendente. É um silêncio que subitamente grita e se faz ouvir.(MORAIS, 1994).

Franz Weismann, 1951

Cubo vazado

Escultura em metal

Relaciono com meu trabalho, que o vazado pode ser a via por onde se respira, inspirando o infinito do vazio absorvendo a obra com todos os sentidos e em seguida expirando as sensações, que cada um traz em seu repertório pessoal interagindo com virtualidade do espaço criado pelo artista. O ir e vir fazem parte do mesmo caminho a ser percorrido pelo caminhante.

Lucio Fontana² procura, na materialidade de suas obras evidenciar com atitudes severas as possibilidades de ruptura da matéria, como em seus Buchi (Furos), e a partir de 1957, seus Tagli (Cortes), Fontana realiza com um gesto decidido: corta a superfície pictórica - utilizando instrumentos da escultura, rompendo com a ilusão de profundidade proporcionada pela perspectiva desde o Renascimento. Segundo Pier Luigi Tazzi:

O campo oferecido pela superfície da pintura, e que Fontana define na medida exata, é um campo de forças por causa do conteúdo simbólico que a tradição e a história, da arte ocidental, contribuíram para construir: plano da representação, superfície da projeção do imaginário, espelho opaco das coisas, espaço ilusório ou concreto para a construção das figuras e dos ícones. Fontana o delimita e desnuda em suas monocromias, quer seja o branco da tela preparada, quer seja uma cor."(TAZZI, 1998. v.1, p. 214, apud Acervo MACC-USP, Ficha 21, Fontana, p. 65).

Lucio Fontana, 1955

Esferas

Cerâmica

Lucio Fontana, 1968

Concetto spaziale, Attesa

Incisões em tela

65 × 54 cm

Quando Fontana fura ou rasga a matéria da obra, possibilitando um contato entre o espaço interior e o exterior buscando uma nova dimensão de mundo, procedo com as mesmas intenções, através de incisões para retirada de camadas, buscando a ruptura da bidimensionalidade do plano pictórico e da tridimensionalidade da matéria em direção ao espaço continuo e ampliado sem determinar um meio de expressão convencional entre ser pintura, escultura, desenho ou gravura. Pier Luigi Tazzi afirma que:

Rompida a superfície, a constatação do ato do artista nos permite entrever através das estreitas aberturas o que há além. Corrói a estrutura fechada do sistema da pintura, do sistema da arte, do sistema da cultura, e a abre às regiões ulteriores do não-dito, do indizível e do não-representável. (TAZZI, 1998. v.1, p. 214) .

Em minha pesquisa, busco a intencionalidade de desvelar o que pode estar no interior da matéria do trabalho, utilizando procedimentos como incisões, recortes e dobras, procurando revelar o verso, o silêncio e o que não estava iluminado, o invisível e o indivisível, pluridimensional e infinitivo.

Este despojamento do objeto, sem definição de um desenho a priori, que estão no processo de Franz Weissmann e Lúcio Fontana parecem almejar o vazio sem representações, numa dimensão indivisível entre as ideias, as noções e as imagens, em busca do absoluto de Malevitch, sem distinções e contradições entre o que pode ser figura ou pode ser fundo, sendo ao mesmo tempo a experiência e o veículo da experiência, libertando-se do plano para realizar-se no espaço.

A busca por uma impessoalidade, em conformidade com uma linguagem visual autônoma e não-representativa da organicidade da obra, transcendendo seu espaço mecânico, levou-me a perceber o ato criativo com todos os sentidos do corpo, ao mesmo tempo sobrepondo-se ao olhar gráfico sobre os elementos compositivos, deixando que por eles mesmos se encaixem sem minha interferência pré-objetiva e falem por si mesmos.

¹FRANZ Weissmann. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa9471/franz-weissmann>. Acesso em: 06 de Nov. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

²MACC-USP. Acervo – Roteiros de visitas – Ficha 21, Fontana, p.65. Disponivel em: http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/roteiro/PDF/21.pdf